Lendas do Samba: sonho meu, teu e de Ivone Lara
por Erick Bernardes
Imagine o adulto que percebe tarde o motivo de a tia Anastácia e a sambista Ivone Lara serem tão familiares. Pois é, temos aqui um caso dos mais interessantes. Decerto o leitor mais velho também pensará assim, só os mais velhos e atentos.
Tantas vezes assisti ao Sítio do Picapau Amarelo e nunca me dei conta do revezamento das atrizes no elenco das histórias de Monteiro Lobato reproduzidas na tevê. Não tive certeza, parecia só impressão. Incrível é o sacolejo na memória nascido do acaso. Explico. Dia desses, assistindo às gravações do desfile da Império Serrano e prestando atenção ao samba enredo cantado magistralmente por dona Ivone Lara e companhia, a familiaridade da voz e a aparência iam além do carnaval. Forcei a memória, insisti no pensamento, mas foi só quando um folião da escola anterior, (a Mangueira), vestido de Visconde de Sabugosa, emitiu um grito no microfone global da Glória Maria é que juntei os pontos. Bingo! Estava montado o quebra-cabeças que tanto me atormentava o juízo. Sim, isso mesmo, uma das tias Anastácias era de fato a dona Ivone Lara. Aquele folião maluco, berrando em frente à câmera de televisão, me fez pensar nas conexões certas. A Mangueira havia homenageado Monteiro Lobato. Estava claro, o integrante fantasiado de espiga de milho gigante era um dos quarenta componentes da ala da Literatura Infantil. Meu Deus, tantos anos pra me dar conta só agora? A cabeça da gente não segue lógica mesmo, claro que não. Lembro, eu amava aquela senhora de lenço amarrado na cabeça. Tão aconchegante. Não tenho dúvidas de que a atuação de dona Ivone era a que mais me agradava. Ah, lembrança boa! O mundo do faz de contas na voz melódica de Gilberto Gil, crescemos assim. O contraste foi mesmo notório pois, da tela de tevê ao samba da Império Serrano de 2013, eu assistia à dama cantar, enquanto a própria emissora exibia trechos de carnavais anteriores de outras escolas.
Dona Ivone Lara nasceu em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, em abril de 1922. Filha de mãe costureira e pai mecânico de bicicletas, ambos também eram músicos nas horas vagas. Ivone conheceu cedo o mundo do samba. Com o falecimento dos pais criou-se com os tios, que lhe ensinaram dentre outras coisas a tocar cavaquinho. Casou em 1947 e teve dois filhos, Alfredo e Odir, trabalhou duro até se aposentar como enfermeira e assistente social.
Contam que começou o carnaval frequentando a escola de samba Prazer da Serrinha, quando longe do trabalho dava vazão à sua arte. Sua vida revelou-se plena de histórias, não apenas no mundo do samba, mas no meio cultural brasileiro. Já pensou em alguém que por causa da sua música recebeu elogios até do mestre Villa-Lobos? E se essa mulher conheceu a psiquiatra brasileira Nise da Silveira? Impressionante. Para completar, ela foi uma das fundadoras da escola de samba de Madureira, a própria Império Serrano, quando passou a sair em desfile na ala das baianas.
Sabe-se que Dona Ivone teve suas composições interpretadas por artistas do mais alto gabarito como: Maria Bethânia, Clara Nunes, Paulinho da Viola, Gal Costa, Caetano Veloso, Marisa Monte, dentre muitos outros. Autora de canções relevantes como Nasci para sofrer, Não me perguntes e Os cinco bailes da história do Rio, música esta que a projetou como a primeira mulher a integrar a ala de compositores da escola verde e branco, a própria Império Serrano. Seu maior sucesso deu-se mesmo com o samba Sonho meu, sob a interpretação de Gal Costa e Maria Bethânia.
Infelizmente, em abril de 2018, Ivone faleceu. O velório, embora melancólico, aconteceu com muita paz para todos os amigos que estiveram na quadra da Império Serrano. Ela soube viver como ninguém; nenhuma frustração ou arrependimento. Mulher pioneira, artista de primeira, realizou decerto muitos dos sonhos que cantou. E lá se foi a Dama da Serrinha, com “a sua liberdade” transformada em versos, anunciar outros novos sonhos e me tomar de assalto: chegando e fazendo “a dança das flores no meu pensamento”.
Palmas para Ivone Lara!
Fonte: Jornal Vozes da Serra
4 Comentários
Dona Ivone Lara gravou seu nome na história da música no Brasil. Sua voz e seu carisma inconfundiveis ecoarão para sempre na nossa memória.
Seu sonho nos embala até hoje.
Saudades eternas.
Obrigado, querido Oswaldo. Escrevi essa crônica no carnaval do ano passado, mas acho tão marcante a trajetória dela que senti necessidade de republicar.
Bela homenagem à grande dama!
Obrigado, minha amiga Carina.
A vida de doação de dona Ivone daria um romance. Rss